As cinco liberdades de Virgina Satir

É comum que um relacionamento se torne, após um tempo, mais parecido com um cabo de guerra do que com um relacionamento cooperativo. O parceiro é encarado quase como um oponente, ao qual devo medir forças, do que com um colaborador onde estamos na mesma posição. Como isso acontece?

Há várias dinâmicas ocultas neste padrão, que enfraquecem o relacionamento e empobrecem a nossa convivência. 

Idealmente, para um relacionamento prosperar e evoluir, é necessário que eu olhe para quem eu me relaciono e possa enxergar nela toda a grandeza que emana desta pessoa. Suas qualidades, sua potência e honrar seu caminho, sua jornada e seus desafios. Reconhecer os desafios que a pessoa superou previamente e entender que estamos juntos agora num mesmo espaço, para também juntos crescermos e evoluirmos. Neste espaço eu estou em pé de igualdade e importância com ele, que também reconhece o meu caminho, as minhas habilidades e dá um espaço para que as minhas feridas possam ser curadas ao longo do tempo. 

Mas não é o que acontece em muitos casos. Um dos motivos é que ainda estamos muito identificados com nossas próprias histórias, e as dores que carregamos delas. Muitas mulheres cresceram em ambientes tóxicos onde o masculino era visto com uma figura de opressão e de repressão do feminino. O homem passa a ser visto com mágoa ou rancor, e mesmo encontrando o amor em uma nova relação estas feridas podem ser ativadas em momentos de atrito. Da mesma forma, homens podem vir de ambientes onde não era possível confiar no feminino, crescendo num ambiente de medo e desconfiança, por exemplo. 

Há nesta dinâmica a possibilidade de cada um tentar “proteger” suas dores, se blindando contra o outro num momento de tensão, justamente por não conseguir confiar na figura masculina/feminina presente. Este movimento, ancorado em vivências passadas, gera pouca energia para um crescimento mútuo. É um movimento que gera oposição, quando num relacionamento é necessária a congruência, de forças e de intenções. 

É no poder da congruência que se baseia o crescimento mútuo numa relação, quando apesar das dores e vivências passadas – ou por conta delas, de fato – passamos a unir forças para que seja possível um crescer compartilhado, quando eu dou espaço para que minha vida seja contemplada em sua plenitude, e reconheço esta mesma possibilidade de abertura no meu parceiro. É necessário um grau de liberdade e autonomia para isto, que deve ser aprendido e retomado. 

Virginia Satir, em seu livro Contato com o tato, afirma que o verdadeiro poder está na congruência e no que ela chama de 5 liberdades, que eu aqui resumo em cinco palavras-conceito: Aceitação, Sentimento, Expressão, Vontade e Movimento. Essas palavras definem campos onde estas 5 liberdades são possíveis, mas que devem ser conquistadas. E não digo conquista no sentido de batalha, de conflito – embora nem sempre seja fácil – mas no sentido de clamarmos por um direito que nos foi suprimido, de nos movermos em direção a algo que já é nosso. E esta supressão pode ser fruto de nossa história, de nossos traumas e da forma como nos desenvolvemos. Mas são liberdades necessárias para se entrar num espaço de crescimento e conexão. São elas:

Aceitação: A liberdade de ver e escutar o que está aqui, ao invés do que se supõe.

Talvez esta, a primeira, seja uma das mais complexas de ser entendida e de ser conquistada. A liberdade em questão trata de ver e escutar livremente, sem pré-concepções ou crenças. E embora seja impossível eliminar todas as pré-concepções e crenças, é também muitas vezes difícil de enxergar elas onde estão. Sendo assim tudo o que vemos ou ouvimos está neste momento passando por um “filtro” que nos “conta” o que devemos ver e ouvir. São as “visões de mundo” que nos foram deixadas em formato de um “filtro de olhar” deixado a nós pelos nossos pais e famílias, nossa cultura, nossa religião (ou ausência dela) e nossa educação. E este filtro para ser visto e ser deixado de lado – ou para que se escolha outro – passa pela desconstrução do nosso olhar e do nosso escutar. Esta desconstrução, longe de ser uma revolução ou demolição total, é na verdade um olhar atento, um rever o que se vê para que seja possível perceber coisas novas e ver as coisas pelo que elas são, ao invés de supor o que seriam. Só assim, com uma visão e escuta críticas, é possível deixar esses filtros que não são nossos e levar adiante apenas o que é nosso. 

Esta liberdade diz sobre olhar as coisas com os nossos próprios olhos, e não os olhos de outras pessoas ou ideias, que nos levam a suposições do que devemos ver ou ouvir. Não enxergar a vida pela ótica de nossos pais, por exemplo, mas ver a vida como ela é, pelos meus olhos. Através dessa liberdade, passamos a ver o que nos interessa e a ouvir o que queremos, sem abandonar o que foi visto com os filtros passados, mas escolhendo ativamente estas óticas para a nossa vida. E tendo consciência disso, saberemos também que o outro, nosso parceiro, estará também vendo e ouvindo pela ótica dele, e talvez, com perspicácia, saberemos ver quando ele está vendo a vida através dos olhos dos pais, por exemplo, e ajudá-lo a enxergar a vida por conta própria. 

Saber ver o que está aí, e não o que se supõe é uma grande arte que simplifica o nosso viver e nos remove do campo das expectativas falsas e nos ajuda a aceitar na realidade o que se impõe como presente. 

Sentimento: A liberdade de sentir o que se sente, em vez do que se deveria sentir

Esta é a liberdade de conexão interna com nossa própria verdade emocional e de validar o que sentimos como autêntico, ao invés de nos deixar influenciar pelo que nos dizem ou supor o que devemos sentir. Em determinado momento pode ser estranho sentir alívio quando alguém parte, quando nos dizem que deveríamos estar sofrendo. E esta incongruência pode levar a outros sentimentos secundários, como culpa ou vergonha pelo que se sente. É libertador se permitir validar o que se sente considerando todo o espectro das emoções, e não apenas aquelas que achamos que podemos sentir. Algumas emoções são vistas como “negativas” ou “erradas” como quando nos contam que é “feio ter raiva de fulano” ou “você deveria ter vergonha de sentir isso, deveria ser agradecido, etc. 

O que pode ser menos construtivo ou não adequado é o comportamento que se tem ao se sentir, e não o sentimento em si (Por exemplo, é normal e adequado sentir raiva, mas bater em alguém por isso pode não ser a melhor forma de expressar este sentimento). Então ao mesmo tempo em que devemos ter consciência de nossas verdadeiras emoções – e ter a liberdade para sentí-las sejam elas quais forem – devemos também ter consciência de nossos atos para que elas não sejam expressas de forma destrutiva ou inconscientes. É comum confundirmos a emoção com a resposta emocional, ou a ação que se sucede ao sentimento, e assim vem a condenação a este ou aquele sentimento. Mas as emoções são de nossa natureza biológica e sua repressão pode ser tão ou mais danosa quanto os atos impensados. Ter a liberdade de sentir liberta nosso corpo e ter a consciência sobre isso nos ajuda a escolher a melhor forma de expressar isso. 

Vontade: A liberdade de dizer o que se sente e pensa se quiser em vez de fingir

Ao conquistar a liberdade de se sentir o que se sente se torna possível também poder escolher se dizer o que se sente de fato, ao invés de sempre fingir “que está tudo bem” por exemplo. Muitas vezes não dizemos de verdade o que estamos sentindo – ou passando – pois ficamos presos a um medo do que poderá acontecer se eu contar ao outro o que sinto de fato, ou de vergonha de admitir um determinado sentimento. Ao fazermos isso acabamos nos afastando de nossa própria verdade. Negamos a liberdade de sermos quem somos e exprimir isso livremente, e – de forma indireta – tiramos do outro a liberdade de escolha verdadeira, de tomar uma atitude – seja ela qual for – baseado num sentimento real, e não num fictício. 

O fingimento tem sempre uma ideia de esconder algo. E este ato pode estar a serviço de uma ideia de proteção (minha ou do outro) que acaba sempre enfraquecendo a relação, ou mantendo estática uma relação que já é fraca e necessita de dissimulação para existir. Isso acontece quando se diz “eu gosto disso” quando se quer dizer que não gosta, com medo de machucar o outro. Ou quando se finge estar tudo bem quando temos raiva, com medo que o outro nos abandone. Há sempre a possibilidade de crescimento e amadurecimento quando existe atrito na relação que é solucionado de forma verdadeira e saudável, pois é sempre uma chance para se conhecer melhor – de forma autêntica – o outro e criar um espaço conjunto e maduro de resolução, onde eu me sinto bem em me me expressar e o outro também. 

Fingir pode trazer um alívio momentâneo ao não se estressar um determinado ponto, mas isso sempre gera uma repressão de algo não dito ou expresso, que se juntando a outros criará algo que, no futuro, com certeza não será expresso da melhor forma pois virá tensionado ou acumulado com outros sentimentos e expressões reprimidas e condensadas. 

Ao se dizer o que se sente eu liberto; Liberto a mim, liberto o sentimento e liberto o outro também do fingimento. 

Expressão: A liberdade de pedir o que se quer ao invés de pedir permissão

Uma conhecida usava uma frase curiosa. Quando tinha um doce ou algo de comer para compartilhar ela sempre oferecia desta forma: “Você quer? Pode querer viu?”. Muitas vezes desejamos algo, mas não nos sentimos autorizados a desejar aquilo. Com esta frase ela queria dizer “você tem o direito de querer o que eu ofereço, então pode pedir se quiser”. 

É comum reprimirmos os nossos desejos e sentirmos que eles não tem validade, ou que são fruto de uma vontade egoísta. Assim sentimos que devemos pedir permissão, sermos autorizados para poder pedir algo. Isso vem de longa data, de quando éramos crianças e tudo o que queríamos tínhamos que antes pedir a nossos pais. Posso ver TV? Posso comer biscoito? Posso ir brincar lá fora? O desejo vinha sempre condicionado com a necessidade de permissão. Ao pedirmos permissão para algo que desejamos num relacionamento a dois, nos colocamos num lugar errado, abaixo da pessoa a quem pedimos, como se ela fosse esta figura de pai ou de autoridade a quem devemos satisfações. É diferente você dizer “Eu posso sair com meus amigos?” do que expressar livremente “Eu quero sair com meus amigos”. Na primeira frase você se coloca abaixo, como filho, como alguém que necessita de aceitação. No outro você como sujeito pleno de sua vida expressa um desejo autêntico e real – que pode vir a ser concretizado ou não, mas que parte de um patamar de adulto responsável pela própria vontade. Um relacionamento a dois deve partir de um ponto de igualdade, onde ambos têm liberdade para desejar livremente o que quiserem e onde a concretização desses desejos passa a ser negociada e realizada num espaço comum de convivência. É claro que a liberdade de pedir o que se quer não significa impor a sua vontade ao outro, de forma agressiva e insensata. E significa também, enxergar o desejo do outro de forma igual a sua vontade. 

Movimento: A liberdade de arriscar ao invés de optar somente por sentir-se seguro

Sentir-se seguro e confortável é uma de nossas necessidades básicas mais primordiais. Todos nós buscamos um lugar onde possamos nos sentir bem, sem nos sentir ameaçados ou passar por muitas instabilidades. Ao mesmo tempo é comum que com o passar do tempo, dentro de um lugar de relativo conforto exista também acomodação, de uma forma que não é saudável. Este espaço de acomodação não saudável acontece quando este espaço de conforto é encarado como uma refúgio ao invés de um patamar de crescimento. A vida existe no movimento, num fluxo contínuo de acontecimentos que se sucedem e que seguimos ao longo de nossa existência. Não somos as crianças que éramos, e as crianças de hoje foram bebês ontem. Crescer e evoluir é um processo natural, que acontece de forma dinâmica, mas que compartilhamos em ciclos – etapas, momentos, períodos. É natural e saudável quando conseguimos enxergar e acompanhar este movimento, de pausa e crescimento, respeitando o fluxo da vida. 

Porém, quando em algum destes momentos ou em alguma destas fases eu experimentei muita dor e associo este movimento de crescer ou de se movimentar como algo perigoso e extremamente estressante, posso buscar um refúgio em um determinado patamar de minha vida. Este patamar pode ser um relacionamento, um emprego, um local. Neste caso, a minha relação com o movimento da vida pode estar baseado no medo: Medo de sair, medo de crescer, medo de arriscar algo novo. Pode ser que eu tenha tido uma infância difícil e portanto me acomode num emprego que não gosto, mas que me sustenta. Pode ser que essa dor de infância nem seja minha, mas de meus pais que passaram por privações e eu me sacrifico seguindo uma carreira que não gosto para dar conforto a eles. Qualquer que seja o motivo, há nestas histórias uma limitação que pode ser baseada em crenças, sentimentos ou histórias passadas que vão travar a minha relação saudável com as mudanças e os movimentos da vida. A liberdade de arriscar é também uma afirmação à vida e seu fluxo natural. É se abrir às possibilidades o que inclui se abrir para o que pode dar errado. Sem me permitir errar, eu também não me permito acertar. Grandes empreendedores ou inventores sempre afirmaram que sem o erro e todas as tentativas e falhas, chegar ao sucesso seria impossível. 

Ao nos conectarmos com estas palavras e estas liberdades, abrimos um caminho de possibilidades pautadas em nossa jornada pessoal, e não em crenças ou vivências que não são nossas. Abrimos um espaço de vulnerabilidade e autenticidade junto com nosso parceiro, de forma a construirmos juntos, de forma convergente, um relacionamento verdadeiro, potente e criador. E livre. 

Referências

Photo by Sharon McCutcheon from Pexels

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