Porque nos traumatizamos?

Já parou pra pensar porque algumas pessoas ficam traumatizadas, e outras não? O Dr. Peter Levine, que criou uma técnica para lidar com pessoas que haviam passado por situações traumáticas resolveu tentar responder essa pergunta. ⠀

Estudando Etologia, o comportamento animal na vida selvagem, ele notou que por mais desafiadora e ameaçadora que fosse a vida numa floresta, por exemplo, os animais dificilmente demonstravam sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). O que ele analisou foi que os animais, principalmente mamíferos, apresentavam um sistema de autorregulação, de descarga de todos os recursos e energia que haviam sido mobilizados para lutar, fugir ou retornar de uma situação de congelamento de forma equilibrada. Esse mecanismo, que é como um roteiro de ação, quando bem executado faz com que o organismo não apresente sintomas de traumatização.

Funciona mais ou menos assim: Imagine um cervo, pastando numa savana e que de repente sente um cheiro diferente no ar. Este cheiro, trazido pelo vento, seu sistema imediatamente reconhece como sendo o de um predador. No mesmo segundo, uma série de respostas fisiológicas ao perigo são acionadas. A pupila se dilata, os batimentos cardíacos aceleram e uma série de neurotransmissores e neuropeptídeos são produzidos e lançados na corrente sanguínea. Eles vão muito rapidamente percorrer todo o corpo informando que ele está em perigo e portanto a musculatura, a respiração, nosso sistema de orientação e atenção devem estar prontos para reagir. No momento em que sua visão e audição captam o predador e sua localização, se inicia o processo de fuga, disparando o cervo em direção oposta ao perigo, a todo vapor. Após alguns segundos de perseguição, nosso predador desiste da caça e abandona a corrida. O cervo teve sorte e estava mais preparado. Após tomar a distância necessária, para para descansar e avalia o perigo. Se o seu sistema de orientação não captar mais nenhum sinal do predador, ele então entra em “modo de reparação”, descarregando o excesso de energia mobilizada e não utilizada na fuga, aliviando a tensão muscular, e despejando agora outra leva de neurotransmissores, que vão indicar ao seu corpo que agora ele pode descansar, relaxar e se recuperar. Fim do roteiro. ⠀

Acontece que nem sempre esse roteiro é completado. Quando isso acontece, todo o nosso sistema de alerta e resposta ao perigo fica desregulado, pois nosso sistema nervoso fica desequilibrado. É aí que “mora” o trauma. Mais do que estar na experiência (embora obviamente existam experiências que por si são muito traumáticas como acidentes, abusos, etc.), o trauma na verdade resulta numa interrupção ou numa ruptura de um processo natural do corpo de se autorregular. Desregulado, nosso organismo pode demorar para sair de uma situação de estresse, ver perigo onde não tem, ficar pronto para fugir a todo momento, ou — ao contrário — totalmente apático e sem defesa. São vários os sintomas e consequências. 

Isso pode acontecer quando por exemplo uma resposta de fuga — com a que exemplifiquei acima — não é completada com sucesso. Se esse roteiro não é completado, por qualquer motivo, é como se não fosse finalizado, para nosso organismo. De alguma forma o corpo entende então que o perigo não passou e uma das coisas que pode acontecer é que o nosso sistema de alerta fica “emperrado” em modo “ligado”. Assim, ele não para de despejar na corrente sanguínea o cortisol, por exemplo, que é o hormônio que em quantidades adequadas nos tira da imobilidade, nos movimenta e nos ajuda a enfrentar situações desafiadoras. Em excesso, causa estresse, fadiga e em conjunto com outros fatores causa um constante estado de nos sentirmos sempre em perigo, alertas quase o tempo todo, sem condições de descansarmos plenamente. 

Felizmente há hoje técnicas (como a Experiência Somática desenvolvida por Levine) que levam todo esse mecanismo em consideração, e conseguem auxiliar o corpo a retornar a um estado melhor de autorregulação a partir da consciência corporal, e da percepção de nossas sensações e emoções no momento presente. ⠀

Você conhece essa técnica, ou já passou por uma situação traumática que desequilibrou a sua vida? Saiba que hoje há meios de lidar com o trauma de forma totalmente diferente! Como diz o Dr. Peter Levine, o trauma não precisa ser uma sentença de morte para nossa vida. ⠀

“Planejar o futuro não é viver no futuro”.

Essa frase que o psicólogo Roniel Lopes disse num encontro ressoou dentro de mim, pois as duas coisas se confundem. Muitos de nós vivem no futuro, ansiosos e inquietos, achando que estão se preparando para ele.
Mas viver no futuro — não no presente — imaginando cenários catastróficos, quase sempre nos desgasta, estressa e pouco nos ajuda. Como?

Um das definições de ansiedade que poderíamos usar para este texto seria que ela é o medo do futuro. Por estarmos com medo de algo que ainda pode acontecer, essa sensação de incerteza e de medo algumas vezes são tão insuportáveis para o corpo que como uma forma de dissociação nossa consciência se projeta diretamente para o “futuro”, em nossa mente, e fica antecipando diversos cenários. Sem conseguir identificar que o que eu sinto agora e o que me paralisa de viver o momento atual, não saio do lugar e me projeto para frente, na imaginação. Em nossa imaginação podemos ficar remoendo assuntos e eventos catastróficos, esperando pelo pior, ou ficar fantasiando cenários lúdicos onde aquilo que nos atormenta no presente nem acontece, nem nunca acontecerá. Sonhamos acordados, nos enganamos, através do pensamento mágico que cria realidades irreais.

Quando vivemos plenamente o presente podemos, de forma centrada e equilibrada, planejar o futuro. Num caso eu fico parado, pois eu “me coloquei” lá no futuro, e nada faço de concreto aqui no presente. Fico nesse futuro imaginário, fantasioso. ⠀

No segundo caso eu vivo cada momento de hoje, e esses momentos vão construir as bases do meu futuro. Será algo construído, e feito por mim, pois faço do aqui e agora os tijolos do meu futuro. Pode não ser tão confortável, enfrentar essas sensações desconcertantes de medo, de incerteza e de angústia, mas uma vez que conseguimos passar por isso e realizar atividades concretas que nos vão fazer dar um passo à frente, o alívio se encontra com a satisfação.

Vejo hoje muitas pessoas perdidas na quarentena, com medo e ansiedade sem agir de acordo para melhorar suas chances quando tudo terminar. Há muitas razões para isso, mas melhorar nossa vida passa por viver centrado no presente, e não num futuro hipotético e imaginário. Passa por enfrentarmos os nossos medos e conseguirmos — com ajuda se possível — caminhar no aqui e agora. Somente aceitando a nossa realidade e enfrentando nossos sentimentos e sensações que nos atiram em outra direção.

Por isso eu sempre indico o trabalho com terapias corporais de educação e consciência somática, que vão aos poucos ensinando o corpo a lidar com sensações e sentimentos de uma forma gradual e que não exceda o limite pessoal de trabalho de cada pessoa.

Dessa forma é possível ancorarmos a nossa presença e atenção no momento atual, sem subterfúgios e de forma consistente. E, dessa forma, nos ajudarmos a planejar um futuro melhor ao invés de “viver” um futuro irreal.

Casais em Quarentena

Rodou o mundo as notícias de que em algumas cidades que passaram por quarentena severa, houve um aumento do número de divórcios dias após o término do período de contenção de movimentação social. Há, inclusive, toda a sorte de piadas e memes referenciando o casamento com o período de confinamento forçado. O prognóstico? Casais não estavam tão acostumados a passar tanto tempo juntos em espaço confinado, e as brigas aumentaram muito. Casais novos tenderiam a brigar por causas pequenas, e não estavam ainda acostumados a lidar com o outro, por exemplo. Há relatos inclusive do aumento de violência doméstica, matéria para um segundo artigo. Quais seriam as causas?

Há várias hipóteses e várias explicações possíveis, relativas às dinâmicas de cada casal. Gatilhos emocionais como os que eu falei no último artigo podem disparar num período de confinamento, onde estamos fora de nossa zona de conforto e naturalmente mais estressados. Mas há um problema maior, na minha opinião, e que pode ter disparado o número de brigas e conflitos. Os casais simplesmente não se conhecem bem o suficiente.

Há um dito popular que diz: “Se quer conhecer o caráter de alguém, dê a ele um pouco de poder”. Na mesma linha eu poderia dizer: “Se quer conhecer as respostas emocionais de alguém, coloque-a por um período em estresse”. Quando nos relacionamos com alguém – principalmente em relacionamentos novos – tendemos a mascarar nossos “pontos fracos”. Tudo aquilo que não gostamos e chamamos de “defeitos” ou “falhas”, nós jogamos para debaixo do tapete, para o que o Jung chamou de nosso lado Sombra. A terapeuta Debbie Ford, costuma dizer que nós seguramos o nosso lado sombra como uma bola de praia, debaixo d´água. Fazemos força para que ele não apareça para os outros, mas como é da natureza da bola debaixo d´água, eventualmente uma hora ela vai saltar para fora, na nossa cara. Nós expomos partes de nossa natureza e de nossas questões emocionais não resolvidas quando não conseguimos controlar tudo e momentos de estresse, e então deixamos “escapar” uma parte de nós que antes tentávamos ocultar da vista dos outros.

Bem, é o que está acontecendo agora. Confinados, fora de nossas zonas de conforto, segurar o nosso lado “mascarado” por muito tempo tende a não funcionar num ambiente sem escapes. Somos obrigados a mostrar todas as nossas facetas, e como não estamos acostumados a nos mostrarmos por inteiro, isso sempre gera desconforto, e possivelmente, atrito. Em um espaço menor e sem variação, coisas que antes conseguimos disfarçar ou descarregar em outros ambientes se tornam constantes e sem descarga. A casa pode virar uma panela de pressão, e cada cômodo guardar um potencial de ativar algum conflito. Por espaço, por dominância, por organização, por falta de organização. Como fazer?

Antes de tudo, através da vulnerabilidade. A vulnerabilidade, que muitas vezes é confundida com fraqueza, está a serviço da conexão verdadeira, como já nos mostrou Brené Brown. E é de conexão verdadeira que casais atualmente sentem falta. Infelizmente, muitas vezes, os traumas ou feridas emocionais que nos impedem de uma comunicação verdadeira – por medo de nos machucarmos de novo – corroem a relação antes de conseguirmos nos conectar de fato.

A vulnerabilidade tem menos a ver com uma falsa ideia de exposição total, de se abrir inteiramente ao outro ou de mostrar todas as nossas facetas, sem filtro algum ou sem critério. Ser vulnerável na verdade é ser aberto, tanto para mostrar, quanto para acolher o outro, mas sem forçar – sem pressionar – para que isso ocorra. Antes de se abrir ou exigir que o outro se abra sem reservas – que são normais pois durante muito tempo estas reservas protegeram as nossas feridas – é estar ali disponível para o outro. Presente, por inteiro.

Parece fácil, mas não é. Pois o estar presente por inteiro exige estar atento inclusive para estes lados nossos que nos são desconfortáveis e que podem surgir a qualquer momento. É estar ali e olhar nos olhos dos outros e poder dizer, “Eu estou aqui, mas estou com medo”; “Eu escuto você, mas quando ouço isso eu sinto isso aqui no peito”. Ser vulnerável não é não ter medo de se mostrar. É ter medo, é admitir esse medo, e poder compartilhar isso.

Ser vulnerável significa também não agredir. A agressão, para muitas pessoas, é um escudo. Nos colocamos para ouvir o outro, mas quando ouvimos algo que nos sensibiliza, que nos toca, sem estamos realmente vulneráveis, podemos reagir de uma forma não construtiva. Ao invés de ouvir, acolher e confortar ou propor uma solução construtiva, nós julgamos, criticamos e respondemos sem que isso ajude na relação. O que muitas vezes nós ouvimos do outro, de sua verdade, pode nos assustar. E se não estamos preparados para ouvir, a reação pode ser uma crítica ou um julgamento aquilo que me machuca. O outro, ao invés de se abrir mais, provavelmente vai se fechar mais. Quantas vezes já vimos isso acontecer?

O atrito nasce da falta de sincronismo. A falta de sincronismo nasce da falta de ressonância, e de comunicação. E a falta de comunicação nasce do medo, das diversas vezes em que tentamos nos expressar mas não fomos ouvidos, ou fomos julgados. Se abrir novamente este espaço soa doloroso e impossível, pode ser necessário um trabalho prévio, para que se compreenda de onde estas reservas, estes hiatos, surgem. E não devemos temer pedir ajuda. Atualmente, há muitos canais online que oferecem aconselhamento, conforto e sabedoria em tempos turbulentos. Nos curando internamente, podemos nos abrir de forma mais sincera e menos reativa e assim termos diálogos – e relacionamentos – mais saudáveis. Vamos melhorar de vida?

Referências

Foto: Vivek Prakash (Getty Images)

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52012304

https://elpais.com/elpais/2020/03/11/icon/1583929050_192802.html

https://holofote.sapo.pt/da-que-falar/2020-03-18-numero-de-divorcios-na-china-aumenta-devido-ao-novo-coronavirus/

Gatilhos Emocionais e nosso passado

Algumas vezes recebo clientes que relatam questões muito similares. Por mais que amem seus parceiros, há sempre um mecanismo de agressão na relação, uma engrenagem que parece impedir os dois de uma convivência mais pacífica.

Os relatos começam com acusações ou indiretas sobre seus parceiros. Algo como “Fulano me tira do sério”, ou “Quando ela faz isso e não me deixa agir é que eu reajo e as brigas começam”, ou “Se ele/ela não fosse tão assim eu poderia ser diferente”… conhece essa história?

É claro que a outra pessoa fez algo, mas não importa o quê. A isso nós damos o nome de gatilho emocional, ou seja, algo que dispara em nós uma resposta emocional intensa.

O importante é perceber que o gatilho tem menos a ver com o evento em si e mais em como nós nos sentimos quando isso acontece. Porque isso diz muito sobre nós mesmos (e como melhorar a situação).

Quando uma situação gatilho acontece, algo que ocorre ou outra pessoa faz nos toca intensamente. É aquela sensação de que alguém pôs “o dedo na ferida” e reagimos quase sem pensar, como que “por instinto”.

O que muita gente não sabe é que a situação chamada de gatilho não é a maior causadora do estresse emocional que vivenciamos. O que em geral ocorre é que ela tem características de uma outra situação, esta sim a fonte do problema, que em geral foi vivida no passado, possivelmente na nossa infância. E como isso acontece?

Situações de stress emocional vividas na infância são delicadas e mais intensamente vivenciadas pois acontecem numa fase em que temos poucos recursos psicológicos e racionais para lidar com ela. Então, digamos como um exemplo, que uma situação de abandono vivenciada por uma criança – vamos dizer que os pais esqueceram de pegar ela na escola – é vivida como um trauma de abandono, onde a criança se sente desprotegida, desamparada e muito solitária, por não ter ainda os recursos para entender logicamente o que aconteceu. Esta memória fica gravada de forma mais intensa no cérebro, mesmo que de forma subconsciente. Para um adulto, ficar esperando 30 minutos pode ser irritante mas não absurdo, mas para uma criança pequena, isso pode ser percebido como ameaçador a sua própria sobrevivência.

O que ocorre então é que quando nosso parceiro “esquece” de nos pegar em algum local combinado, a semelhança com esta memória ativa reações primárias, ligadas a um instinto de defesa e sobrevivência que visam nos proteger de sentir novamente a mesma dor de quando éramos menores e desprotegidos. Reagimos de forma “irracional” e mesmo sendo adultos, na hora esquecemos de qualquer explicação mais racional como a dificuldade de trânsito das metrópoles, a quantidade de tarefas que nosso parceiro tinha que fazer naquela tarde, e assim por diante. Quando ele chega para nos pegar, “projetamos” nele toda a raiva e frustração não do adulto, mas da criança que deseja não mais ser abandonada.

É neste ponto que o trabalho terapêutico tem valor. Muitas pessoas questionam ou ironizam o fato de em terapias nós sempre voltarmos para estas questões primordiais, questões de infância, relacionamento entre pais e filhos, talvez por não entenderem justamente estes mecanismos de projeções que são disparadas em situações-gatilhos por questões emocionais subconscientes e que foram gravadas há muito tempo atrás. E como melhoramos isso?

Nos reconectando de forma consciente com estas questões é possível ressignificar de forma gradativa nossos traumas e questões subconscientes, para que o trauma seja desacoplado de um evento cotidiano (um atraso para um encontro) de um sentimento profundo de abandono. Desta forma é possível passar pela situação desconfortável sem atrelar a ela outros sentimentos intensos e enxergar mais facilmente que nem sempre uma atitude de alguém foi feita para nos provocar, ou nos tirar do sério, ou como falta de amor. Este é um dos caminhos mais eficientes para que brigas e discussões frequentes sejam colocadas de lado para um caminho mais harmonioso.

Há hoje muitas terapias que trabalham diretamente e de forma eficiente com estas questões, se utilizando de ferramentas de percepção corporal e emocional para explorar de forma suave e controlada estas emoções intensas. Das existentes, duas que trabalham de forma corporal e que eu aplico são a Respiração Bioflow e também a Experiência Somática (Somatic Experiencing₢) para descobrir, se conscientizar e trabalhar com essas questões subconscientes e que nos prejudicam no dia-a-dia. Vamos melhorar de vida?

As cinco liberdades de Virgina Satir

É comum que um relacionamento se torne, após um tempo, mais parecido com um cabo de guerra do que com um relacionamento cooperativo. O parceiro é encarado quase como um oponente, ao qual devo medir forças, do que com um colaborador onde estamos na mesma posição. Como isso acontece?

Há várias dinâmicas ocultas neste padrão, que enfraquecem o relacionamento e empobrecem a nossa convivência. 

Idealmente, para um relacionamento prosperar e evoluir, é necessário que eu olhe para quem eu me relaciono e possa enxergar nela toda a grandeza que emana desta pessoa. Suas qualidades, sua potência e honrar seu caminho, sua jornada e seus desafios. Reconhecer os desafios que a pessoa superou previamente e entender que estamos juntos agora num mesmo espaço, para também juntos crescermos e evoluirmos. Neste espaço eu estou em pé de igualdade e importância com ele, que também reconhece o meu caminho, as minhas habilidades e dá um espaço para que as minhas feridas possam ser curadas ao longo do tempo. 

Mas não é o que acontece em muitos casos. Um dos motivos é que ainda estamos muito identificados com nossas próprias histórias, e as dores que carregamos delas. Muitas mulheres cresceram em ambientes tóxicos onde o masculino era visto com uma figura de opressão e de repressão do feminino. O homem passa a ser visto com mágoa ou rancor, e mesmo encontrando o amor em uma nova relação estas feridas podem ser ativadas em momentos de atrito. Da mesma forma, homens podem vir de ambientes onde não era possível confiar no feminino, crescendo num ambiente de medo e desconfiança, por exemplo. 

Há nesta dinâmica a possibilidade de cada um tentar “proteger” suas dores, se blindando contra o outro num momento de tensão, justamente por não conseguir confiar na figura masculina/feminina presente. Este movimento, ancorado em vivências passadas, gera pouca energia para um crescimento mútuo. É um movimento que gera oposição, quando num relacionamento é necessária a congruência, de forças e de intenções. 

É no poder da congruência que se baseia o crescimento mútuo numa relação, quando apesar das dores e vivências passadas – ou por conta delas, de fato – passamos a unir forças para que seja possível um crescer compartilhado, quando eu dou espaço para que minha vida seja contemplada em sua plenitude, e reconheço esta mesma possibilidade de abertura no meu parceiro. É necessário um grau de liberdade e autonomia para isto, que deve ser aprendido e retomado. 

Virginia Satir, em seu livro Contato com o tato, afirma que o verdadeiro poder está na congruência e no que ela chama de 5 liberdades, que eu aqui resumo em cinco palavras-conceito: Aceitação, Sentimento, Expressão, Vontade e Movimento. Essas palavras definem campos onde estas 5 liberdades são possíveis, mas que devem ser conquistadas. E não digo conquista no sentido de batalha, de conflito – embora nem sempre seja fácil – mas no sentido de clamarmos por um direito que nos foi suprimido, de nos movermos em direção a algo que já é nosso. E esta supressão pode ser fruto de nossa história, de nossos traumas e da forma como nos desenvolvemos. Mas são liberdades necessárias para se entrar num espaço de crescimento e conexão. São elas:

Aceitação: A liberdade de ver e escutar o que está aqui, ao invés do que se supõe.

Talvez esta, a primeira, seja uma das mais complexas de ser entendida e de ser conquistada. A liberdade em questão trata de ver e escutar livremente, sem pré-concepções ou crenças. E embora seja impossível eliminar todas as pré-concepções e crenças, é também muitas vezes difícil de enxergar elas onde estão. Sendo assim tudo o que vemos ou ouvimos está neste momento passando por um “filtro” que nos “conta” o que devemos ver e ouvir. São as “visões de mundo” que nos foram deixadas em formato de um “filtro de olhar” deixado a nós pelos nossos pais e famílias, nossa cultura, nossa religião (ou ausência dela) e nossa educação. E este filtro para ser visto e ser deixado de lado – ou para que se escolha outro – passa pela desconstrução do nosso olhar e do nosso escutar. Esta desconstrução, longe de ser uma revolução ou demolição total, é na verdade um olhar atento, um rever o que se vê para que seja possível perceber coisas novas e ver as coisas pelo que elas são, ao invés de supor o que seriam. Só assim, com uma visão e escuta críticas, é possível deixar esses filtros que não são nossos e levar adiante apenas o que é nosso. 

Esta liberdade diz sobre olhar as coisas com os nossos próprios olhos, e não os olhos de outras pessoas ou ideias, que nos levam a suposições do que devemos ver ou ouvir. Não enxergar a vida pela ótica de nossos pais, por exemplo, mas ver a vida como ela é, pelos meus olhos. Através dessa liberdade, passamos a ver o que nos interessa e a ouvir o que queremos, sem abandonar o que foi visto com os filtros passados, mas escolhendo ativamente estas óticas para a nossa vida. E tendo consciência disso, saberemos também que o outro, nosso parceiro, estará também vendo e ouvindo pela ótica dele, e talvez, com perspicácia, saberemos ver quando ele está vendo a vida através dos olhos dos pais, por exemplo, e ajudá-lo a enxergar a vida por conta própria. 

Saber ver o que está aí, e não o que se supõe é uma grande arte que simplifica o nosso viver e nos remove do campo das expectativas falsas e nos ajuda a aceitar na realidade o que se impõe como presente. 

Sentimento: A liberdade de sentir o que se sente, em vez do que se deveria sentir

Esta é a liberdade de conexão interna com nossa própria verdade emocional e de validar o que sentimos como autêntico, ao invés de nos deixar influenciar pelo que nos dizem ou supor o que devemos sentir. Em determinado momento pode ser estranho sentir alívio quando alguém parte, quando nos dizem que deveríamos estar sofrendo. E esta incongruência pode levar a outros sentimentos secundários, como culpa ou vergonha pelo que se sente. É libertador se permitir validar o que se sente considerando todo o espectro das emoções, e não apenas aquelas que achamos que podemos sentir. Algumas emoções são vistas como “negativas” ou “erradas” como quando nos contam que é “feio ter raiva de fulano” ou “você deveria ter vergonha de sentir isso, deveria ser agradecido, etc. 

O que pode ser menos construtivo ou não adequado é o comportamento que se tem ao se sentir, e não o sentimento em si (Por exemplo, é normal e adequado sentir raiva, mas bater em alguém por isso pode não ser a melhor forma de expressar este sentimento). Então ao mesmo tempo em que devemos ter consciência de nossas verdadeiras emoções – e ter a liberdade para sentí-las sejam elas quais forem – devemos também ter consciência de nossos atos para que elas não sejam expressas de forma destrutiva ou inconscientes. É comum confundirmos a emoção com a resposta emocional, ou a ação que se sucede ao sentimento, e assim vem a condenação a este ou aquele sentimento. Mas as emoções são de nossa natureza biológica e sua repressão pode ser tão ou mais danosa quanto os atos impensados. Ter a liberdade de sentir liberta nosso corpo e ter a consciência sobre isso nos ajuda a escolher a melhor forma de expressar isso. 

Vontade: A liberdade de dizer o que se sente e pensa se quiser em vez de fingir

Ao conquistar a liberdade de se sentir o que se sente se torna possível também poder escolher se dizer o que se sente de fato, ao invés de sempre fingir “que está tudo bem” por exemplo. Muitas vezes não dizemos de verdade o que estamos sentindo – ou passando – pois ficamos presos a um medo do que poderá acontecer se eu contar ao outro o que sinto de fato, ou de vergonha de admitir um determinado sentimento. Ao fazermos isso acabamos nos afastando de nossa própria verdade. Negamos a liberdade de sermos quem somos e exprimir isso livremente, e – de forma indireta – tiramos do outro a liberdade de escolha verdadeira, de tomar uma atitude – seja ela qual for – baseado num sentimento real, e não num fictício. 

O fingimento tem sempre uma ideia de esconder algo. E este ato pode estar a serviço de uma ideia de proteção (minha ou do outro) que acaba sempre enfraquecendo a relação, ou mantendo estática uma relação que já é fraca e necessita de dissimulação para existir. Isso acontece quando se diz “eu gosto disso” quando se quer dizer que não gosta, com medo de machucar o outro. Ou quando se finge estar tudo bem quando temos raiva, com medo que o outro nos abandone. Há sempre a possibilidade de crescimento e amadurecimento quando existe atrito na relação que é solucionado de forma verdadeira e saudável, pois é sempre uma chance para se conhecer melhor – de forma autêntica – o outro e criar um espaço conjunto e maduro de resolução, onde eu me sinto bem em me me expressar e o outro também. 

Fingir pode trazer um alívio momentâneo ao não se estressar um determinado ponto, mas isso sempre gera uma repressão de algo não dito ou expresso, que se juntando a outros criará algo que, no futuro, com certeza não será expresso da melhor forma pois virá tensionado ou acumulado com outros sentimentos e expressões reprimidas e condensadas. 

Ao se dizer o que se sente eu liberto; Liberto a mim, liberto o sentimento e liberto o outro também do fingimento. 

Expressão: A liberdade de pedir o que se quer ao invés de pedir permissão

Uma conhecida usava uma frase curiosa. Quando tinha um doce ou algo de comer para compartilhar ela sempre oferecia desta forma: “Você quer? Pode querer viu?”. Muitas vezes desejamos algo, mas não nos sentimos autorizados a desejar aquilo. Com esta frase ela queria dizer “você tem o direito de querer o que eu ofereço, então pode pedir se quiser”. 

É comum reprimirmos os nossos desejos e sentirmos que eles não tem validade, ou que são fruto de uma vontade egoísta. Assim sentimos que devemos pedir permissão, sermos autorizados para poder pedir algo. Isso vem de longa data, de quando éramos crianças e tudo o que queríamos tínhamos que antes pedir a nossos pais. Posso ver TV? Posso comer biscoito? Posso ir brincar lá fora? O desejo vinha sempre condicionado com a necessidade de permissão. Ao pedirmos permissão para algo que desejamos num relacionamento a dois, nos colocamos num lugar errado, abaixo da pessoa a quem pedimos, como se ela fosse esta figura de pai ou de autoridade a quem devemos satisfações. É diferente você dizer “Eu posso sair com meus amigos?” do que expressar livremente “Eu quero sair com meus amigos”. Na primeira frase você se coloca abaixo, como filho, como alguém que necessita de aceitação. No outro você como sujeito pleno de sua vida expressa um desejo autêntico e real – que pode vir a ser concretizado ou não, mas que parte de um patamar de adulto responsável pela própria vontade. Um relacionamento a dois deve partir de um ponto de igualdade, onde ambos têm liberdade para desejar livremente o que quiserem e onde a concretização desses desejos passa a ser negociada e realizada num espaço comum de convivência. É claro que a liberdade de pedir o que se quer não significa impor a sua vontade ao outro, de forma agressiva e insensata. E significa também, enxergar o desejo do outro de forma igual a sua vontade. 

Movimento: A liberdade de arriscar ao invés de optar somente por sentir-se seguro

Sentir-se seguro e confortável é uma de nossas necessidades básicas mais primordiais. Todos nós buscamos um lugar onde possamos nos sentir bem, sem nos sentir ameaçados ou passar por muitas instabilidades. Ao mesmo tempo é comum que com o passar do tempo, dentro de um lugar de relativo conforto exista também acomodação, de uma forma que não é saudável. Este espaço de acomodação não saudável acontece quando este espaço de conforto é encarado como uma refúgio ao invés de um patamar de crescimento. A vida existe no movimento, num fluxo contínuo de acontecimentos que se sucedem e que seguimos ao longo de nossa existência. Não somos as crianças que éramos, e as crianças de hoje foram bebês ontem. Crescer e evoluir é um processo natural, que acontece de forma dinâmica, mas que compartilhamos em ciclos – etapas, momentos, períodos. É natural e saudável quando conseguimos enxergar e acompanhar este movimento, de pausa e crescimento, respeitando o fluxo da vida. 

Porém, quando em algum destes momentos ou em alguma destas fases eu experimentei muita dor e associo este movimento de crescer ou de se movimentar como algo perigoso e extremamente estressante, posso buscar um refúgio em um determinado patamar de minha vida. Este patamar pode ser um relacionamento, um emprego, um local. Neste caso, a minha relação com o movimento da vida pode estar baseado no medo: Medo de sair, medo de crescer, medo de arriscar algo novo. Pode ser que eu tenha tido uma infância difícil e portanto me acomode num emprego que não gosto, mas que me sustenta. Pode ser que essa dor de infância nem seja minha, mas de meus pais que passaram por privações e eu me sacrifico seguindo uma carreira que não gosto para dar conforto a eles. Qualquer que seja o motivo, há nestas histórias uma limitação que pode ser baseada em crenças, sentimentos ou histórias passadas que vão travar a minha relação saudável com as mudanças e os movimentos da vida. A liberdade de arriscar é também uma afirmação à vida e seu fluxo natural. É se abrir às possibilidades o que inclui se abrir para o que pode dar errado. Sem me permitir errar, eu também não me permito acertar. Grandes empreendedores ou inventores sempre afirmaram que sem o erro e todas as tentativas e falhas, chegar ao sucesso seria impossível. 

Ao nos conectarmos com estas palavras e estas liberdades, abrimos um caminho de possibilidades pautadas em nossa jornada pessoal, e não em crenças ou vivências que não são nossas. Abrimos um espaço de vulnerabilidade e autenticidade junto com nosso parceiro, de forma a construirmos juntos, de forma convergente, um relacionamento verdadeiro, potente e criador. E livre. 

Referências

Photo by Sharon McCutcheon from Pexels

Crescer num relacionamento

Uma relação afetiva não é uma relação de ajuda, mas uma relação que ajuda.

Joan Garriga

É comum que as pessoas entrem num relacionamento afetivo em busca de algo que as complete. Dentro dessa perspectiva infantil, buscam alguém que possa nutrir suas faltas e suas necessidades. Buscam, em última instância, um pai, ou uma mãe. 

Assim, ao invés de estar num relacionamento para crescerem de forma adulta e saudável, buscam um relacionamento para manter o seu status atual. Preferem continuar pequenos, esperando que alguém providencie o que lhe falta ou lhe faltou antes. Isso pode ser um afeto, um cuidado, um olhar. É um movimento de olhar o outro como um provedor. Ele que vai me dar um casamento, ela que vai me dar amor, e por aí vai. 

Quantas mulheres não reclamam que se casaram e, além dos filhos, tem também o marido para criar? 

Quantos homens não mantém suas esposas abaixo deles, controlando elas como filhas pelas quais se “sentem” responsáveis? 

Uma relação afetiva saudável pode ser, para ambos, a entrada de fato no mundo adulto, onde há a possibilidade de cura destes padrões infantis e de crescimento emocional. É necessário para isso saber que a relação não tem como objetivo nos fazer felizes, no sentido romântico do termo, mas ser um espaço de conexão e de crescimento, de fazer algo maior juntos. Este crescimento vai acontecer em momentos de alegria, mas também em momentos de dor e de decepção, que precisam ser contemplados e acolhidos, como parte da jornada de crescimento. 

Assim, o outro será não uma muleta ou suporte, mas um companheiro legítimo, um companheiro de caminho, em que podem crescer e explorar o mundo criando algo novo e enriquecedor para ambos. 

Photo by Dương Nhân from Pexels

O equilíbrio entre dar e receber num relacionamento

Todo relacionamento é baseado num equilíbrio entre as partes, e parte desse equilíbrio é gerado pela dinâmica do “dar e receber”, conceito disseminado por Bert Hellinger em seu trabalho com Constelações Familiares. 

Joan Garriga usa ainda a expressão “dar e tomar”, dando um caráter mais ativo para a pessoa que recebe. É necessário tomar o que é dado, de forma consciente, e não apenas receber de forma passiva o que é oferecido. 

Esta dinâmica, aparentemente simples, esconde um equilíbrio delicado. Eu devo oferecer ao outro o que eu posso dar, e o outro, na mesma medida, deve tomar o que consegue de mim, e me oferecer algo em troca que também esteja dentro das suas possibilidades. Desta forma não se fica uma “dívida” pelo que foi recebido, e eu retomo a minha autonomia e liberdade com dignidade. 

A simplicidade termina aí. Algumas vezes é possível ter este equilíbrio de forma harmônica, mas a nossa história de vida, cheia de exemplos desequilibrados ou feridas a serem curadas, se junta a história do outro, com igual medida de desbalanços. O resultado é que muitas vezes eu acabo oferecendo mais do que eu posso dar, ou do que seria justo e saudável. Posso ter uma crença de que “nunca faço o bastante” e portanto fico sempre compensando, oferecendo coisas ao outro que não foram pedidas, ou não são necessárias. Pode ser também que eu tenha a chamada “Síndrome do salvador”, e portanto eu fico sempre me doando para o outro, tentando salvar ou melhorar a sua vida de todas as formas. Ou, se estiver num roteiro de vitimismo, fico do outro lado esperando tudo, quero apenas receber, sem dar nada em troca, como um filho a espera da comida da mamãe. 

Um dos resultados deste desequilíbrio é que o outro fica virtualmente com uma grande dívida de ações que não consegue “pagar”. A retribuição, física ou emocional, fica tão desproporcional frente às expectativas que o desequilíbrio gera mais tensões e problemas, ao invés de soluções. É comum que num destes estados o outro abandone a relação, por não suportar a dívida, ou não suportar mais doar tanto a mais do que realmente deveria.

Para ter um relacionamento saudável, uma das chaves é equilibrar esta balança, fazendo apenas o que me cabe, e dentro do que eu posso receber. Do outro tomo também  apenas aquilo que é o justo, sendo grato pela sua disposição, mas na medida exata em que ela possa oferecer. Assim eu posso pagar um auxílio prestado com um belo jantar, e a outra pessoa pode me pagar o jantar com um afeto, e criamos uma espiral harmônica de crescimento contínuo, baseado num equilíbrio dinâmico justo para todos. 

E você? como anda o equilíbrio das ações em sua relação? 

Que contrato eu assinei no meu relacionamento?

Há em todo relacionamento um contrato, explícito ou implícito, que governa a relação. Ele é condicional, baseado em termos que a outra parte deve cumprir – sabendo disso ou não – para que eu cumpra a minha parte. Nessa dinâmica mora um grande desafio que é conversar e negociar esse contrato que surge quando a relação começa.


Ele é feito a partir da convivência do casal, e nem sempre é discutido de antemão. Contém pressupostos de ambas as partes. Eu prometo te amar, eu prometo não te machucar, eu prometo cuidar de você. Existem muitas variações para o que está escrito em cada contrato.

Em algumas está escrito “Eu cuido de você, e você cuida disso que eu não sei cuidar direito”. Em outros “Você não pode sair com outras pessoas sem mim, mas eu posso se eu quiser”. Noutros está escrito “Se você errar comigo está tudo acabado”. São muitas as condições, e muitas as cláusulas. Muitas delas são condicionais: Eu amo você SE você for do jeito que quero. Eu cuido disso SE você fizer aquilo outro.

Como todo contrato, ele é aberto a negociação e a boa comunicação é vital para que todas as arestas sejam aparadas e os conteúdos deste contrato sejam claros e justos para todos.

Mas algumas pessoas desejam um contrato de relacionamento que seja incondicional, em que não exista esta negociação ou este “se”. E este contrato é baseado em frases do tipo “eu te amarei para sempre, aconteça o que acontecer”; “Você deve cuidar de mim independente do que eu faça”; “Você me deve fidelidade eterna”. São frases que buscam uma relação tão incondicional quanto a relação entre pais e filhos, onde uma parte sempre vai amar ou ser mais responsável pelo outro. E nesse caso sabemos que o que buscamos é uma relação infantil, onde do outro tudo eu espero. Ou ao outro eu me sinto responsável por tudo dar.


O desafio nesse caso é amadurecer a relação até que o outro seja meu igual e eu possa dialogar os termos dessa relação de uma forma equilibrada e saudável.


E você? Como está o seu contrato?

Quem é responsável pela minha felicidade num relacionamento?

Ao deixar nossa felicidade na mão do outro numa relação, abrimos mão de duas coisas: a responsabilidade por nosso destino e a liberdade para seguí-lo. Como diz Joan Garriga, também damos ao outro uma tarefa que não é dele, transformando a nossa felicidade num fardo a se carregar.


Essa projeção pode levar a uma felicidade ilusória, quando o outro tenta suprir nossas carências. Mas o final desse filme não é feliz e acontece quando o outro nos frustra ao não atingir nossas expectativas e sonhos enquanto tenta resolver nossas dores emocionais. Assim sobrecarregamos o outro com problemas que não são dele, nem cabem a ele resolver. Se o outro entra neste teatro, busca se adequar a papel que é uma visão idealizada, irreal, do que ele pode e deve fazer. Falta nesta peça a liberdade de agir por conta própria e a auto responsabilidade que vem junta.

Um relacionamento saudável vai sempre na direção de entender que as questões que me movem em direção à felicidade não cabem ao outro, e sim a mim resolver. Ao outro cabe o papel, muito desejado e bem vindo, de me acompanhar e dar suporte nesta empreitada, mas de forma que ele também tenha liberdade para buscar a sua felicidade. É um caminhar juntos, e não um caminhar dele em minha direção, ou de mim na direção dele. Essa felicidade e este caminhar podem envolver planos e projetos conjuntos, desde que cada um saiba bem e assuma a sua corresponsabilidade para que estes projetos sejam comuns, e não a imposição ou realização do sonho de apenas um sobre o outro.

A saúde do homen

Segundo a OPAS, a Organização Pan-americana da Saúde, A cada três mortes de pessoas adultas no Brasil, duas são de homens. No Brasil os homens vivem, em média, sete anos menos do que as mulheres e têm mais doenças do coração, câncer, diabetes, colesterol e pressão arterial mais elevadas. São também os que mais se suicidam. São dados simples e diretos, que denotam que a saúde masculina, em geral, não vai bem. 

Numa busca rápida encontramos dezenas ou mesmo centenas de bons artigos explicando como ser mais saudável, como comer ou dormir melhor, fazer mais exercícios para, sendo mais saudável, viver mais e – principalmente – melhor. Mesmo com tanta informação, tantos métodos e maneiras diferentes de se conseguir este objetivo, nós vemos pessoas que ainda lutam em iniciar um programa de atividades físicas, ou uma dieta mais balanceada. Porquê? 

Um dos aspectos que podem levar alguém, em especial os homens, a não mudar um comportamento prejudicial a sua própria saúde é o aspecto emocional, ou melhor, a sua saúde emocional. Como terapeuta, reconheço o papel fundamental que as emoções têm de interferir, para o bem e para o mal, na mudança e aquisição de comportamentos que nos levam a uma vida mais saudável

Sempre dizemos “preciso comer melhor” ou “eu preciso fazer exercícios” mas quase nunca nós dizemos “Eu preciso ter melhores pensamentos” ou “Eu preciso cuidar de como eu me sinto”. Os homens, acostumados por condicionamento familiar ou social a esconder e não demonstrar suas emoções e vulnerabilidades, menos ainda. Por conceitos distorcidos e nocivos do que seria um ideal de masculinidade e do que é ser Homem, acabamos cheios de crenças de que “sentir é coisa pra mulher”, “homem não chora”, “essa história de se emocionar é bobagem, tenho tudo sobre controle”. Tem mesmo? 

O que vemos é o contrário. Homens dentro do que hoje chamamos de masculinidade tóxica em comportamentos auto-destrutivos, colocando a sua vida e a de outros em perigo. Tendo surtos violentos no trânsito, onde descarregam a pressão acumulada e projetam em outras pessoas. Agressões incontroladas, incitação à violência e uma visão distorcida sobre como tratar os outros. Parece tudo, menos controlado. Ao contrário de não termos emoções vemos que temos sim muitas mas que são suprimidas, reprimidas e que quando liberadas, de uma vez e sem consciência, tendem a gerar um estrago. 

Num workshop ministrado pela coach Tania Mujica, numa dinâmica onde os participantes eram convidados a expressarem seus sentimentos e sensações reprimidas e não expressas, um homem pediu para ficar de fora da dinâmica. Ao final, pediu para explicar o porquê. Disse que sentiu que ninguém, naquela sala, participantes e organizadores, estariam preparados para lidar com o que ele trazia guardado dentro de si, em décadas de sentimentos reprimidos. Pode ser verdade. Acostumados a não lidarmos com as questões emocionais e os sentimentos de outros homens, estaria a sociedade pronta para receber tudo isso, de uma vez? 

De alguma forma precisamos começar, pois este desequilíbrio em como os homens tratam suas emoções surte sim efeito em sua saúde física e mental. Não é de hoje que tratamos muitos sintomas físicos como causados por fatores emocionais, onde uma crise de ansiedade pode gerar uma dor crônica que perdura anos a fio trazendo mais desconforto. A resposta masculina, em geral, continua a mesma: “Não é nada, não se preocupe”. 

A boa notícia é que sim, começamos. Vemos aumentar as discussões em torno do que seria um masculino saudável e crescer, por exemplo, os  círculos de homens que discutem questões cotidianas de como é a paternidade nos dias de hoje, ou mesmo o que representa ser homem nos dias de hoje. Eu participo ativamente do Movimento Guerreiros do Coração, onde a ideia não é nos tornarmos homens mais “sensíveis” ou suaves, menos brutos. A ideia é nos tornarmos homens inteiros, aceitando tanto a nossa força quanto a nossa vulnerabilidade. E isso, posso garantir, tira um enorme peso das costas, de coisas não ditas ou reprimidas. Nos sentindo mais leves, a vida fica mais fácil. E ficando mais fácil, mais saudável. Pois eu vejo que posso e devo cuidar de mim, não pelo outro ou para o outro, mas por mim, pois eu sou homem e também mereço me cuidar e ser cuidado. 

Francisco Masuda

(texto originalmente escrito para a Clínica Ita Wegman)

Referências

Image by bruce lam from Pixabay 

https://br.mundopsicologos.com/artigos/alexitima-incapacidade-para-identificar-e-expressar-emocoes