Rodou o mundo as notícias de que em algumas cidades que passaram por quarentena severa, houve um aumento do número de divórcios dias após o término do período de contenção de movimentação social. Há, inclusive, toda a sorte de piadas e memes referenciando o casamento com o período de confinamento forçado. O prognóstico? Casais não estavam tão acostumados a passar tanto tempo juntos em espaço confinado, e as brigas aumentaram muito. Casais novos tenderiam a brigar por causas pequenas, e não estavam ainda acostumados a lidar com o outro, por exemplo. Há relatos inclusive do aumento de violência doméstica, matéria para um segundo artigo. Quais seriam as causas?
Há várias hipóteses e várias explicações possíveis, relativas às dinâmicas de cada casal. Gatilhos emocionais como os que eu falei no último artigo podem disparar num período de confinamento, onde estamos fora de nossa zona de conforto e naturalmente mais estressados. Mas há um problema maior, na minha opinião, e que pode ter disparado o número de brigas e conflitos. Os casais simplesmente não se conhecem bem o suficiente.
Há um dito popular que diz: “Se quer conhecer o caráter de alguém, dê a ele um pouco de poder”. Na mesma linha eu poderia dizer: “Se quer conhecer as respostas emocionais de alguém, coloque-a por um período em estresse”. Quando nos relacionamos com alguém – principalmente em relacionamentos novos – tendemos a mascarar nossos “pontos fracos”. Tudo aquilo que não gostamos e chamamos de “defeitos” ou “falhas”, nós jogamos para debaixo do tapete, para o que o Jung chamou de nosso lado Sombra. A terapeuta Debbie Ford, costuma dizer que nós seguramos o nosso lado sombra como uma bola de praia, debaixo d´água. Fazemos força para que ele não apareça para os outros, mas como é da natureza da bola debaixo d´água, eventualmente uma hora ela vai saltar para fora, na nossa cara. Nós expomos partes de nossa natureza e de nossas questões emocionais não resolvidas quando não conseguimos controlar tudo e momentos de estresse, e então deixamos “escapar” uma parte de nós que antes tentávamos ocultar da vista dos outros.
Bem, é o que está acontecendo agora. Confinados, fora de nossas zonas de conforto, segurar o nosso lado “mascarado” por muito tempo tende a não funcionar num ambiente sem escapes. Somos obrigados a mostrar todas as nossas facetas, e como não estamos acostumados a nos mostrarmos por inteiro, isso sempre gera desconforto, e possivelmente, atrito. Em um espaço menor e sem variação, coisas que antes conseguimos disfarçar ou descarregar em outros ambientes se tornam constantes e sem descarga. A casa pode virar uma panela de pressão, e cada cômodo guardar um potencial de ativar algum conflito. Por espaço, por dominância, por organização, por falta de organização. Como fazer?
Antes de tudo, através da vulnerabilidade. A vulnerabilidade, que muitas vezes é confundida com fraqueza, está a serviço da conexão verdadeira, como já nos mostrou Brené Brown. E é de conexão verdadeira que casais atualmente sentem falta. Infelizmente, muitas vezes, os traumas ou feridas emocionais que nos impedem de uma comunicação verdadeira – por medo de nos machucarmos de novo – corroem a relação antes de conseguirmos nos conectar de fato.
A vulnerabilidade tem menos a ver com uma falsa ideia de exposição total, de se abrir inteiramente ao outro ou de mostrar todas as nossas facetas, sem filtro algum ou sem critério. Ser vulnerável na verdade é ser aberto, tanto para mostrar, quanto para acolher o outro, mas sem forçar – sem pressionar – para que isso ocorra. Antes de se abrir ou exigir que o outro se abra sem reservas – que são normais pois durante muito tempo estas reservas protegeram as nossas feridas – é estar ali disponível para o outro. Presente, por inteiro.
Parece fácil, mas não é. Pois o estar presente por inteiro exige estar atento inclusive para estes lados nossos que nos são desconfortáveis e que podem surgir a qualquer momento. É estar ali e olhar nos olhos dos outros e poder dizer, “Eu estou aqui, mas estou com medo”; “Eu escuto você, mas quando ouço isso eu sinto isso aqui no peito”. Ser vulnerável não é não ter medo de se mostrar. É ter medo, é admitir esse medo, e poder compartilhar isso.
Ser vulnerável significa também não agredir. A agressão, para muitas pessoas, é um escudo. Nos colocamos para ouvir o outro, mas quando ouvimos algo que nos sensibiliza, que nos toca, sem estamos realmente vulneráveis, podemos reagir de uma forma não construtiva. Ao invés de ouvir, acolher e confortar ou propor uma solução construtiva, nós julgamos, criticamos e respondemos sem que isso ajude na relação. O que muitas vezes nós ouvimos do outro, de sua verdade, pode nos assustar. E se não estamos preparados para ouvir, a reação pode ser uma crítica ou um julgamento aquilo que me machuca. O outro, ao invés de se abrir mais, provavelmente vai se fechar mais. Quantas vezes já vimos isso acontecer?
O atrito nasce da falta de sincronismo. A falta de sincronismo nasce da falta de ressonância, e de comunicação. E a falta de comunicação nasce do medo, das diversas vezes em que tentamos nos expressar mas não fomos ouvidos, ou fomos julgados. Se abrir novamente este espaço soa doloroso e impossível, pode ser necessário um trabalho prévio, para que se compreenda de onde estas reservas, estes hiatos, surgem. E não devemos temer pedir ajuda. Atualmente, há muitos canais online que oferecem aconselhamento, conforto e sabedoria em tempos turbulentos. Nos curando internamente, podemos nos abrir de forma mais sincera e menos reativa e assim termos diálogos – e relacionamentos – mais saudáveis. Vamos melhorar de vida?
Referências
Foto: Vivek Prakash (Getty Images)
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52012304
https://elpais.com/elpais/2020/03/11/icon/1583929050_192802.html